Por Rosana Garjulli
A partir da década de 1980, consolida-se no mundo a discussão de um novo modelo de desenvolvimento, que tem como princípio central o conceito de sustentabilidade. É no contexto desta agenda que os estados brasileiros passam a discutir e redefinir seu arcabouço jurídico e institucional sobre recursos hídricos, o qual se fundamentam nos princípios da gestão descentralizada, integrada e participativa, tendo a bacia hidrográfica como unidade de planejamento e gestão e a água como um bem público e econômico.
O que essas iniciativas legais e institucionais têm demonstrado é que, diante da ameaça concreta de um quadro cada vez mais grave de escassez de água, uma outra mentalidade se foi delineando nesse setor. Gerenciar de forma eficiente os recursos hídricos passa a ser concebido como a associação de medidas jurídicas, institucionais, administrativas, técnicas e de organização social que, articuladas a medidas estruturais de realização de obras, têm como objetivo o ordenamento e a definição de regras conjuntas dos usos e preservação dos recursos hídricos, que visam assegurar sua sustentabilidade.
Vale destacar que essa nova postura frente à problemática hídrica encontra inúmeros desafios em sua implementação, uma vez que muda de forma significativa o enfoque sobre o setor e se contrapõe a práticas historicamente estabelecidas, em especial no Nordeste semi-árido, tais como: a cultura de "privatizar" o uso da água; as decisões governamentais tomadas de forma centralizada; as ações assistenciais que caracterizam os períodos de seca; o desinteresse e a ausência de iniciativa dos usuários e da sociedade na busca de alternativas para gestão sustentável dos recursos hídricos.
A INTERVENÇÃO DO ESTADO NO SEMI-ÁRIDO
A região semi–árida caracteriza-se, principalmente, pela escassez de água, decorrente da incidência de chuvas apenas em curtos períodos de três a cinco meses por ano, irregularmente distribuídas no tempo e no espaço. Essa característica causa uma forte dependência da intervenção do homem sobre a natureza, no sentido de garantir, por meio de obras de infra-estrutura hídrica, o armazenamento de água para abastecimento humano e demais usos produtivos.
O Estado brasileiro, em especial na região semi-árida, tem longa tradição de intervenção de caráter centralizador e fragmentado no setor hídrico, pois as iniciativas sempre partiram de decisões governamentais de caráter unilateral e, não raro, para atender interesses pontuais, particulares ou setoriais, quer seja na construção de barragens, em projetos de irrigação, perfuração de poços ou construção de adutoras.
A política hídrica para a região, em sua fase hidráulica, priorizou a construção de obras, sem garantir o uso público da água acumulada em milhares de açudes, de pequeno e médio porte, que se tornaram "privados", por estarem localizados dentro de propriedades privadas. Quanto aos grandes reservatórios, administrados por órgãos estatais, garantiu-se sua utilização pública sem, contudo, articular esta disponibilidade de água com outras políticas públicas, tais como as políticas agrícolas e agrárias, o que serviu para potencializar a capacidade produtiva de quem já era proprietário de terra, quer seja nas proximidades dos açudes ou mesmo ao longo dos vales que se tornaram perenes devido à liberação de águas desses reservatórios nos períodos de escassez.
Como decorrência econômica direta dessa forma de intervenção estatal, as áreas úmidas, do Nordeste semi-árido, tornaram-se supervalorizadas, pois passaram a contar com a garantia de dois elementos produtivos essenciais: terra e água.
Outra forma de intervenção pública, nesse setor caracterizou-se pela implantação de projetos de irrigação. O DNOCS e a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf) foram os principais órgãos públicos federais encarregados da implantação e do gerenciamento desses projetos, em todo o Nordeste. Implantados, em sua maioria, durante o período do regime militar, a intervenção governamental deixou sua marca centralizadora e autoritária também nessa área.
Os perímetros públicos irrigados, como são denominados, constituíam-se de centenas de pequenos lotes de três a cinco hectares, mas eram gerenciados por equipes técnicas dos órgãos públicos que tomavam todas as decisões, da operação e manutenção do sistema de irrigação à decisão do que produzir, onde e como comercializar.
A partir de 1992, o governo Collor de Melo "emancipou", por meio de decreto, todos os projetos de irrigação pública federal os quais se encontravam com inúmeros problemas de infra-estrutura, com um grande número de irrigantes irregulares que foram se instalando nas chamadas "áreas mortas", em situação financeira desfavorável e com gerências de cooperativas despreparadas para assumirem as inúmeras e complexas atividades de direção e gestão dos projetos.
As precárias condições físicas e econômicas em que se encontram esses projetos públicos de irrigação, somadas a utilização de métodos de irrigação inadequados e a exploração de culturas impróprias à realidade do semi-árido, tais como a cultura do arroz e da cana-de-açúcar por consumirem muita água, têm resultado num sério desafio à gestão eficiente desses projetos de irrigação.
Em virtude dessas dificuldades, nos meios técnicos e políticos conservadores, se tem atribuído o fracasso desses projetos ao pequeno irrigante, que é incapaz de "lidar" com a agricultura irrigada, muito complexa e exigente de grandes investimentos, apresentando como alternativa disponibilizar essas áreas em leilão público, para grandes empresas privadas nacionais ou internacionais. A alternativa de "privatizar" os projetos públicos de irrigação levaria, inevitavelmente, a mais concentração de renda e exclusão social dos segmentos que não detêm a propriedade da terra e da água na região.
Como na região semi-árida o acesso à água para fins produtivos, sempre esteve muito vinculado à propriedade da terra. A demanda da população pobre manteve-se, ao longo dos anos, circunscrita ao atendimento de água para consumo humano, quer seja nos períodos de seca, através de carros pipa e perfuração de poços ou, de forma mais permanente, com a construção de pequenas barragens, adutoras e cisternas. Recentemente, setores vinculados à sociedade civil organizada, que incluem entidades ambientalistas que desenvolvem programas de convivência com o semi-árido e setores da igreja católica, têm desenvolvido programa que objetiva a construção de um milhão de cisternas, na região.
O programa procura trazer para a pauta das comunidades a discussão sobre o direito de ter água de boa qualidade para consumo humano, as cisternas são construídas e mantidas pela comunidade, procurando evitar o exemplo de milhares de poços e cisternas construídos por órgãos públicos e que, posteriormente, foram abandonados por falta de manutenção.
Constata-se, portanto, que mais uma vez a proposta da sociedade está voltada apenas para garantir água para consumo humano. O projeto, concebido e implementado, inicialmente, por entidades da sociedade civil, está sendo gradativamente inserido na agenda dos órgãos governamentais, sem, contudo demonstrar capacidade de extrapolar o atendimento da reivindicação mais imediata, de água para consumo humano, para discussão da água como um bem público, dotado de valor econômico, elemento imprescindível ao processo produtivo e ao desenvolvimento e que, portanto, deve ter sua utilização e gestão democratizada.
DESAFIOS DA GESTÃO PARTICIPATIVA NA REGIÃO SEMI-ÁRIDA
É relevante observar que a nova concepção de gestão de recursos hídricos não é apenas um conjunto de medidas burocráticas/institucionais, mas traz em seu bojo uma necessária mudança de mentalidade, de comportamentos e atitudes, muitas vezes historicamente cristalizados na sociedade, decorrente de concepções e práticas conservadoras. A constituição e funcionamento dos Comitês de Bacia Hidrográfica, organismos colegiados de base do Sistema Nacional de Recursos Hídricos, exige, portanto, a identificação de metodologias que considerem as especificidades físicas, culturais, econômicas e políticas de cada bacia, as quais são bastante diferentes em cada região e estado do país.
Entre os desafios que se colocam para implementação da política de gestão participativa dos recursos hídricos na região semi-árida, está a herança cultural e política de práticas clientelistas e conservadoras consolidadas na relação entre o Estado e a sociedade. Historicamente, as oligarquias rurais detiveram o controle dos órgãos de implementação das políticas de combate a seca e reforçaram, em suas intervenções, a vinculação da propriedade privada da terra e da água.
O desafio de promover a participação social em uma sociedade impregnada pela prática clientelista é imenso, pois como produto de um Estado autoritário onde os direitos de cidadania foram subtraídos, o cidadão passa a ser sinônimo de cliente, de beneficiário. O que este "cliente" ou "beneficiário" cobra da gestão pública é que ela seja distribuidora de benefícios quer sejam individuais ou coletivos.
Contudo, mesmo com esse complexo "capital social" que dificulta o exercício de práticas de gestão democrática e participativa dos recursos hídricos, a necessidade de água como um bem vital e econômico é ainda mais evidente numa região semi-árida. Os açudes, que funcionam como grandes caixas d’água, guardando as águas das chuvas para serem utilizadas no período seco, passam a ser extremamente estratégicos. A dependência que os usuários a jusante (de baixo) dos açudes têm dos usuários a montante (de cima), para ter garantia de água em quantidade e qualidade suficiente, durante todo o ano, é um forte elemento motivador para o estabelecimento de regras de uso e preservação desses mananciais, entre seus usuários.
Essas características físicas e naturais da região semi-árida fazem com que o planejamento e gerenciamento participativo de grandes açudes públicos, que está sendo implementado, por exemplo, no Ceará, tenha se destacado como elemento positivo e inovador na recente experiência de gestão das águas no semi-árido. O fato dos usuários e da sociedade local, através de Comitês de Bacias ou Conselhos Gestores de Açude, terem o poder de deliberar sobre a gestão de grandes reservatórios, decidindo anualmente as vazões de água a serem liberadas, assim como as suas regras de uso e preservação tem resultado, na prática, não apenas na gestão mais eficiente da água mas no verdadeiro exercício da cidadania.
A experiência de alocação de água negociada tem demonstrado que a implementação da política de recursos hídricos, não pode estar condicionada apenas à aplicação dos instrumentos de gestão previstos legalmente, tais como: planos de bacia, outorga, licença e cobrança. Sua efetividade depende, essencialmente, do reconhecimento das diferentes realidades regionais e da necessidade de se identificar elementos mobilizadores da sociedade que, em cada região ou bacia, motive a participação social na gestão compartilhada e descentralizada da água.
Vale destacar, ainda, que a política de recursos hídricos, implantada em cada estado e nacionalmente, não é delimitada apenas por aspectos técnicos, legais e burocráticos, mas evidencia claramente a opção de desenvolvimento adotado em cada região, em cada estado e no país e é neste contexto institucional, que os Comitês de Bacia como entes colegiados do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos constituem-se em espaços privilegiados de discussão desses projetos.
Na região semi-árida, enquanto as intervenções governamentais limitarem-se às ações que não impliquem em mudanças estruturais, como as que seriam derivadas da realização da reforma agrária e da execução de programas de irrigação, postos em prática também em articulação com a reforma agrária, a concentração de renda aumentará e a região continuará tendo seu processo de desenvolvimento comprometido.
A situação de escassez permanente de água, na região semi-árida, leva à necessidade da gestão compartilhada, entretanto, quer seja pelos vícios do aparato estatal ou da própria população, a prática política conservadora certamente se repetirá se a sociedade, em seu conjunto, não se der conta de que a água é um bem público e que, portanto, o seu gerenciamento compartilhado deverá garantir a democratização de seus usos e a sua preservação, condição imprescindível para sucesso de qualquer estratégia de desenvolvimento para a região.
Cabe aos Comitês de Bacia um papel estratégico nesse processo de intervenção governamental, pois são eles que devem decidir sobre os usos prioritários das águas em suas bacias, sobre a transposição de águas de suas bacias, sobre quem e quanto se pagará pelo uso da água bruta e sobre os destinos dos recursos arrecadados. Na nova concepção de gestão de recursos hídricos, cabe, portanto, aos Comitês de Bacia, muito além da posição de usuários/consumidores, intervirem na definição da política pública de gestão de recursos hídricos a qual, inevitavelmente, possui uma clara interface com o modelo de desenvolvimento adotado em uma região.
Rosana Garjulli é socióloga da Agência Nacional de Águas.
Disponível para download AQUI