quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Conflitos em torno do uso da água: Uma saída viável.

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          O Brasil possui uma das maiores reservas de água do planeta, mas ainda assim nem todos os brasileiros têm acesso à água em quantidade e com a qualidade suficientes. Nossa água precisa abastecer populações, atender indústrias e irrigar áreas agrícolas; essa tarefa tem se tornado cada vez mais difícil, com o crescimento do consumo, a poluição dos mananciais e a concentração populacional e da atividade econômica em áreas com pequena disponibilidade hídrica.

          Há uma década, depois de longa tramitação no Congresso Nacional, foi promulgada a Lei 9.433/97, que estabeleceu a nova Política Nacional de Recursos Hídricos. Definiu-se então a água como um bem de domínio público, cujos usos prioritários seriam o abastecimento humano e a dessedentação animal, e cuja gestão deveria se dar de maneira descentralizada e participativa. A mesma Lei estabeleceu os chamados “instrumentos de gestão”, a saber: o plano de recursos hídricos; a outorga de uso; o enquadramento; os sistemas de informação; e a cobrança pelo uso. No entanto, de forma geral a efetivação dessa Política tem se dado de forma muito lenta no país, o que é comprovado pela qualidade das águas dos rios – que não tem melhorado.

          Nesse cenário, situações de conflito entre usuários – que precisam enfrentar a redução da quantidade ou da qualidade da água disponível – continuam ocorrendo. O crescimento populacional e econômico, por sua vez, implica o incremento do uso da água, tornando as situações de conflito mais acirradas. Soluções práticas se fazem necessárias.

          Uma dessas soluções é a alocação negociada de água, que consiste em um conjunto de ações devidamente articuladas tendo como objetivo a organização dos diversos usos da água em um determinado reservatório ou trecho de rio. Na alocação, busca-se atender minimamente a todos os usuários, levando-se em conta tanto as demandas quanto as incertezas em relação à disponibilidade.

          Informa-se que a alocação negociada de água foi aplicada de forma pioneira no país na década de 1990, no Estado do Ceará, pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos, em parceria com a Secretaria de Recursos Hídricos do Estado e o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas. Naquela época, a alocação era desenvolvida em reservatórios destinados, principalmente, ao abastecimento humano, à dessedentação animal e à irrigação. Posteriormente, processos de alocação passaram a acontecer em bacias hidrográficas daquele Estado, caso do Jaguaribe e do Banabuiú.

          É importante destacar que a alocação negociada de água não foi definida, na Lei 9.433/97, como um dos instrumentos de gestão. No entanto, ela tem se tornado um deles, na prática. Além do mais, a alocação tem induzido uma maior utilização de dois outros instrumentos – a outorga e o sistema de informações –, os quais são utilizados ao longo do seu desenvolvimento.

          Por outro lado, o processo de alocação implica tanto a participação direta dos usuários de água e dos demais interessados quanto a existência de um colegiado representativo capaz de administrar os acordos em torno do uso da água, que pode ser um Comitê de Bacia ou uma Comissão Gestora de Reservatório. Dessa forma, a alocação fortalece o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH), conjunto de órgãos e colegiados com competências relacionadas com a gestão da água. Verifica-se, assim, que a alocação contribui para o avanço da Política Nacional de Recursos Hídricos, ao favorecer a implementação de instrumentos de gestão e do SINGREH.

          A alocação, conforme já mencionado, pode ser definida como um conjunto de ações devidamente articuladas, com o objetivo de organizar os diversos usos da água em um determinado reservatório ou trecho de rio – ou seja, trata-se de gerenciar as águas. Para atingir seus objetivos, o processo de alocação associa o uso de técnicas computacionais de apoio à decisão com o forte envolvimento dos usuários de água e demais interessados, que são chamados a conhecer o problema, a negociar e a tomar decisões. As etapas que integram o processo de alocação são as seguintes:

- A divulgação do processo utiliza técnicas de Comunicação Social, e tem como meta apresentar o problema para a Sociedade de forma clara, destacando o objetivo da alocação e a importância da participação de todos os interessados no processo de negociação e decisão que acontecerá em breve;

- O cadastramento dos usuários de água situados no reservatório ou curso d’água objeto do trabalho tem como meta identificá-los, bem como conhecer a sua localização, as suas necessidades hídricas mensais e as finalidades de uso, entre outros aspectos;

- A obtenção dos dados relacionados com o problema, o seu compartilhamento entre os técnicos dos órgãos envolvidos e a definição de cenários de solução são o momento no qual se lança mão de equipamentos e sistemas de monitoramento de quantidade e de qualidade da água; nesta etapa também se utilizam modelos computacionais capazes de simular diversas possibilidades de comportamento de um reservatório ou curso d’água, levando-se em conta tanto consumos variados por parte dos usuários quanto a ocorrência de chuvas mais ou menos abundantes – trata-se dos cenários;

- A assembléia dos usuários, em geral aberta também a órgãos públicos e entidades da Sociedade Civil, é a próxima etapa; nela são apresentados as avaliações e os cenários identificados; em seguida, a assembléia discute as possíveis cotas de uso da água para cada usuário, levando sempre em conta o risco de um período chuvoso desfavorável; definidas as cotas, celebra-se o chamado “Pacto de Alocação”, que vigorará por determinado período de tempo; a assembléia então delega a um colegiado representativo – por exemplo, uma Comissão Gestora de Reservatório a responsabilidade de acompanhar o atendimento ao Pacto;

- Com base nas definições da assembléia, o órgão gestor pode então emitir as outorgas de uso, instrumento que assegura ao usuário o direito de utilizar a água de uma determinada fonte, com uma vazão e finalidade determinadas, e por um período pré-definido; outorgas associadas a um processo de alocação poderão ter seus termos modificados em função de mudanças no Pacto de Alocação;

- O colegiado representativo deve se reunir com certa periodicidade ou em função de uma crise; nessas reuniões serão avaliados o cumprimento do Pacto e os seus resultados; caso seja necessário, o colegiado poderá solicitar providências ao órgão gestor ou recomendar à assembléia geral modificações no Pacto; e finalmente, após um determinado período, previamente acordado, é realizada nova assembléia, na qual poderão ser definidas novas cotas de uso, em função dos resultados obtidos; o colegiado representativo também poderá ter, nessa oportunidade, sua composição renovada; fecha-se assim o ciclo da alocação.

 

          Verifica-se claramente que o desenvolvimento de um processo de alocação negociada não envolve altos custos, tanto financeiros quanto em termos de recursos humanos. Órgãos direcionados para a gestão das águas são capazes de desenvolver a alocação: basta que contem com uma estrutura mínima e que sejam capazes de mobilizar os usuários envolvidos na questão.

          A alocação negociada estabelece regras claras para o uso da água, definidas com forte participação dos próprios interessados. Assim, o risco de escassez é reduzido – e também a possibilidade de conflitos, com o atendimento mínimo a todos os usuários e a abertura de canais de negociação entre eles.

          Processos de alocação vêm sendo implementados com bons resultados em algumas regiões do país. Além das experiências no Estado do Ceará, existem hoje registros de processos de alocação em reservatórios situados nos Estados da Bahia e de Minas Gerais e em trechos do rio Piranhas-Açu, entre os Estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte.

          Diante de todos os percalços na concretização da Política Nacional de Recursos Hídricos, e em especial de seus instrumentos, soluções alternativas se impõem para minimizar os problemas decorrentes da escassez de água, do seu uso desordenado e da degradação dos mananciais.

 
 
 

Paulo André Barros Mendes é MSc. em Gestão Ambiental e Territorial (UnB)

Juliana Ferreira Lorentz é Geógrafa e Mestranda em Análise e Modelagem de Sistemas Ambientais (UFMG)

Artigo extraído da revista GTÁGUAS: A revista das águas – ano 3, nº 9, Agosto de 2009. Disponível para download AQUI.

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